segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Água dura

_ Não.
Uma pancada apenas, mas não doeu.

_ Quem sabe no futuro...
Acontece, as batalhas, não se ganham todas.

_ Não.
Que pena...
Vejo que meus calos começam a crescer.

_ Não, não daria certo.
Raios!! Afinal, qual é o problema?
... Creio que sei: Maldito fenótipo!

Devo perguntar? Não, acho que não.
Já sei! Vou demonstrar!
Será, será? Parece que sim! Finalmente!
Vou abrir meu peito, sim acho que está tudo certo.
Paciência, tudo a seu tempo.
Quantos anos mais?!!
Ah não! Não era coisa alguma! Apenas ilusão!
Meu peito está intumescido, roxo, massacrado, dói.
Raios! Maldito fenótipo...

Olá! Tudo bem com voc...
_ Não!
Já devia saber...

Mas veja só: Que mistério, que beleza, que interessante.
Aproximo-me , converso. Parece que vai tudo bem por um tempo.
Que pena, a separação pode dificultar as coisas.
Mas estou aberto, o que posso fazer? Uma carta!
Pronto! Basta esperar a resposta.
Nossa como demora...
Será? Não, de novo não! Maldição!
Esquece...

Onde está minha armadura? Ah lá está...
Onde está minha couraça?
Meu escudo, onde coloco?
Na esquerda ou na direita?
Definitivamente: Na esquerda.
Minha malha de aço, também esta deve ficar sobre meu peito.
A lança na mão direita.

Afastem-se! Deixem-me passar!
Sou Dom Quixote, e não quero mais me dar com moinhos. Tão pouco com Dulcinea.
Ilusão...
E caso os moinhos me abordem, jamais penetrarão na minha proteção!

Tempo, tempo, tempo.
Meses, dias, anos, semanas.

E após uma longa e dificultosa jornada, eis que se mostra a terra prometida!
Cá encontrarei a nobreza, cá sim terei Dulcinea!

Tempo, tempo.
Meses, dias, semanas.

Olá.
_ Olá!

Até mais.
_ Tchau.

Será ela? Minha querida e amada Dulcinea?
Demonstrar, sim demonstrar!
Mas e minha proteção?
A lança e o escudo parecem exagero...
Descarto-os agora.

Sim, é Dulcinea!

Essa vestimenta me sufoca... Fora com tudo isso!
Perguntar? Sim, vá! Avança nobre guerreiro de coração puro!
_ No futuro...
Sim! No futuro! Ou seja: Será!
Paciência, tudo a seu tempo.
Quantos meses mais?
Não... Não novamente.
Sim, tenha paciência, ao seu tempo, ao seu tempo...
Ahhgg! Dulcinea distraída com sua adaga partiu meu tórax,
minhas vísceras, meu sangue.
Meu sangue. meu sangue.. meu sangue...
Malditos romances cavalarescos.

E tudo cicatriza, mas aquela lâmina deixou pústulas em minha carne.
Feridas esverdeadas que a todo momento doem e putrefam, escorrem...

Esqueçam Dom Quixote, ele morreu.
Vívido apenas um resquício de sua nobreza.
Os moinhos venceram e Dulcinea não aceita cavaleiros excêntricos.

Andarilho cinza, mas não sem vontade, com o busto deformado.
É o que sobrou.

E certa vez uma princesa se aproximou, cortejou, se aconchegou.
Não é o ideal, mas... a essas alturas quem liga? Sim, essa é uma chance real.
E o prurido parecia cessar.
Mas num só momento.
Os ossos ficaram a vista, e a mal fechada ferida novamente estava aberta.
A infecção matou a última célula viva do nobre justiceiro insano.

Escuridão.
Escarro.
Cinzas.
Vazio.
Nulo.
Frio.

Uma estátua numa praça abandonada sob os excrementos dos pombos.